Thursday 8 September 2016

Kid A - mais "head" do que "Radio"

                

              Esse foi o texto mais difícil que escrevi até agora. O Radiohead é um dos grandes ícones da música pop que desafia paradigmas. Mesmo produzindo músicas com temáticas densas, sem apelo comercial, renovando a sonoridade a cada álbum, o Radiohead é uma das bandas mais populares do mundo e já vendeu mais de 30 milhões de discos ao longo de sua carreira. Como uma banda que mudou tanto sua sonoridade, de um álbum para outro, pode ter conseguido aumentar sua base de fã e suas vendas? Mais importante ainda: por que houve essa mudança? Se ThomYorke, ainda pequeno, dizia que queria ser uma estrela pop, por que ele arriscaria mudar a fórmula do sucesso já estabelecido nos primeiros anos da banda? Para iniciar essa análise, é justamente nesses primeiros anos que olharemos. Façamos então uma breve análise histórica contextual.

Breve histórico

                O Radiohead era uma banda que quase não existiu. Batizada de On a Friday (por ser sexta-feira o dia que eles se reuniam para ensaiar), Thom Yorke, Ed O’Brien, Phillip Selway e os irmãos Colin e Jonny Greenwood se separaram logo após o término do colegial, e só voltariam a se encontrar quando já formados em suas respectivas universidades. Já batizados de Radiohead (baseada na faixa homônima do álbum do Talking Heads, “True Stories”), lançou em 1991 sua primeira compilação de músicas, “Manic Hedgedog”, que continha algumas músicas que viriam a aparecer em seu álbum debutante, “Pablo Honey”. No meio tempo entre a gravação desta compilação e do álbum, alguns episódios já sinalizavam o que o Radiohead viria a ser. Um deles é quando a banda foi para Londres assinar seu primeiro contrato com uma subsidiária da EMI, a Parlophone, seu representante, Rupert Perry, disse a eles que a música que ele havia mais gostado deles era “Phillipa Chicken”, e Jonny imediatamente respondeu: “bom, isso é engraçado, nós descartamos ela”! Embarcando em uma turnê de suporte a bandas nada mainstreams da Inglaterra, Thom Yorke já demonstrou seus primeiros sinais de intensidade, raspando totalmente seu cabelo, entupindo-se de bebida e fumo, levando a banda a até mesmo a cancelar shows. Toda essa intensidade de Thom é importante ser observada, já que ao longo dos próximos parágrafos, perceberemos o quão ela foi essencial para os direcionamentos da banda.

                Depois de um tempo na estrada e o lançamento do EP “Drill”, que contava com “You” e “Thinking About You”, ambas músicas do “Manic Hedgedog” que viriam a aparecer em “Pablo Honey”, o Radiohead entra no estúdio para gravar o dito cujo. Com influências do shoegaze, grunge e punk, a banda já denunciava uma sofisticação no som de suas três guitarras. Há duas músicas nesse momento que são extremamente importantes para compreensão da obra deles: “Creep” e “Anyone Can Play Guitar”. Esta última foi escrita por Jonny Greenwood e conta sobre  como ele aprendeu a tocar guitarra com seu pai. Mas, na interpretação de Thom, ela era a respeito de subir em um palco, fazer de si um idiota para ser um rockstar, o que já indicava as desilusões de Yorke com a carreira artística e com o rock, outro ponto importante para se entender “Kid A”. Já “Creep” foi concebida em uma balada de Yorke, que tem seu refrão antecipado pela fúria da guitarra de Jonny Greenwood quanto ao tipo de música que era ela. Isso adicionou o toque necessário da música e foi um anúncio do desafio sonoro que a banda propunha. Apesar de hoje em dia ser considera um hit, não foi esse efeito que ela teve na época, sendo considerada pelas rádios como “muito depressiva” e somente garantindo seu sucesso quando foi lançada pela segunda vez como single em 1993, após algum sucesso conquistado em países como Estados Unidos e Israel. Esse fato demonstrou como o Radiohead já havia sido mal compreendido em seu primeiro momento.

                Mas mais do que isso: esse lançamento coincidiu com a volta de uma cansativa turnê nos Estados Unidos (onde a música tinha feito sucesso) e ganhou a sétima posição no single chart da Inglaterra, o que trouxe a atenção para um Radiohead que já havia se distanciado muito daquela música, em termos de composição. Como o próprio produtor de “Pablo Honey”, Chris Hufford, disse “o álbum foi uma fotografia da banda se desenvolvendo”. Esse é outro ponto crucial para se entender o Radiohead, que sempre foi uma banda que procurou progredir em seu som, e isso significa muda-lo e se distanciar daquilo que já foi feito. Além disso, piadas eram direcionadas a Thom como “are you the ‘Creep’ guy/ você é o cara ‘Esquisito’?”, o que com certeza o deixava irritado, tanto com a questão musical, quanto de sua aparência mesmo (ele tem paralisia no olho esquerdo), que já havia gerado apelidos incômodos na escola. Mas é inegável que o Radiohead havia chamado a atenção para eles, tanto em números quanto em sua música. Após abrirem o show para o Tears for Fears, a banda liderada por Roland Orzabal começou então a tocar “Creep” em todos os seus shows, um reconhecimento em tanto para esse grande artista da música popular britânica.

                Depois de um grande período de turnês e promoção, é dada a hora para a gravação do segundo álbum, “The Bends”. Assim, a banda enfrentaria pela primeira vez algo que a assombraria por algum tempo: a pressão para se produzir novas músicas (leia-se hits), mesmo apesar de terem um produtor experiente do lado como John Leckie (que havia produzido, dentre outras, XTC e Pink Floyd). Além da questão sonora, a banda se viu toda junta em Oxford, em um galpão alugado de uma fazenda, e sendo obrigada a entregar singles antes de mais nada, sendo isso o que deveria guiar a gravação do álbum. Além de presos a esse fato, a banda passava por conflitos internos, já que Thom Yorke estava com uma certa síndrome de popstar que ele viria assumir posteriormente, achando que seus companheiros não estavam se esforçando o suficiente e que ele deveria ser guiado pelos seus próprios devaneios artísticos. Mal sabia ele que, de fato, ele assumiria uma figura central, mas por forças externas, e não internas. A banda então conseguiu atrasar o lançamento deste single e entrou em turnê novamente, já tocando músicas que viriam a aparecer no “The Bends”. Isso deu confiança a eles na volta aos estúdios. Após mais turnê e shows consagrados pela mídia e público, eles lançaram “My Iron Lung” como o primeiro single, que já trazia uma sonoridade nas guitarras mais intrincadas e letras mais pessoais de Thom. O hit foi ignorado pelas rádios e lá estava a banda na estrada novamente, dessa vez indo para lugares novos e brigando muito durante esse período. Mas eles voltariam renovados para a finalização do álbum, lançando “High and Dry” como novo single e alcançando a décima sétima posição no single chart. Depois de uma intensa agenda de promoção, o álbum então é lançado e rapidamente alcança a sexta posição no chart da Inglaterra.

                Descrito por Collin como “pequenos retratos de intensidade emocional e experiências pessoais”, “The Bends” trazia uma banda muito mais madura e coesa, sonoramente e conceitualmente falando. O álbum trazia um pouco da temática pós-moderna que o sucederia, como a capa, um boneco-modelo de aula de medicina, carregando uma expressão entre o êxtase e a agonia, já que “The Bends” é o nome do efeito colateral que causa dores aos mergulhadores quando eles sobem rápido demais à superfície. Aclamado pela mídia, que dizia que eles haviam “pulado do segundo para o terceiro álbum”, referindo-se claramente ao amadurecimento da banda. Para garantir que essa imagem fosse reforçada, “Fake Plastic Trees” foi lançada como single nos EUA, como pouco sucesso. Eles só viriam a ganhar atenção lá quando o clipe de “Just” começasse a ser constantemente reproduzido na MTV. Em compensação, em sua turnê com o REM pela Europa, a banda foi aclamada por Michael Stipe, que se declarou um grande fã deles. Eles participariam também do evento beneficente “Help!’, que tinha Paul McCartney, Noel Gallagher e Brian Eno como participantes, e que viria a incluir “Lucky” em sua coletânea, música que pertenceria ao próximo álbum, “OK Computer”.

                Como último single, que é também a última música desse álbum, veio “Street Spirit (Fade Out)”, com um clipe semelhante a um sonho, talvez trazendo o que seria uma prévia da nova cara do Radiohead. Mais melancólico, intimista, a música se conectava de certa forma com o próximo projeto da banda. Mais turnês nos EUA vieram e mais reconhecimento com estas, por parte de Alanis Morissette (com elogios) e da mídia, que aclamava a banda como “o último respiro do rock nesses tempos”. Todo esse contexto é importante, já que nessa breve análise história, percebemos uma escalada de sonoridade, atenção da mídia e expectativa sobre o Radiohead. O que viria agora mudaria para sempre a música pop como se era conhecida.

OK Computer

                Radiohead havia conquistado cacife o suficiente para ter recebido cem mil libras da Parlophone, um estúdio só para eles e um prazo em aberto para a finalização do álbum. Além disso, puderam gravar por si e utilizarem o produtor que quisessem. Nesse momento, entra uma figura importante na história: Nigel Godrich. Até hoje presente nos álbuns da banda, ele é considerado um sexto membro e tem participação ativa em até mesmo termos de composição. Com um background de música eletrônica, ele ajudaria a banda ganhar sua nova sonoridade. Sem muitos resultados iniciais, apontados por Thom por consequência de eles estarem gravando em um estúdio de Oxford, próximos às famílias, e isso estaria distraindo a todos. A banda teve então que dar uma pausa para fazer mais uma turnê nos EUA, que já contaria com algumas versões de músicas do “OK Computer”, como uma “Paranoid Android” de 14 minutos com solos de órgão improvisados.

                Durante essa turnê, foi requisitada uma música para a versão de “Romeu e Julieta” do diretor Baz Luhrmann. “Street Spirit” foi usada como “Talk Show Host” e, nos créditos do filme, apareceria “Exit Song (For a Film)”, mais uma música do “OK Computer”, mas que não entrou no álbum da trilha sonora original (a pedido da banda). Essa música foi gravada onde boa parte do álbum aconteceu, na mansão deSt. Catherine's Court, uma mansão abandonada da atriz Jane Seymour. Esse lugar permitiu que a banda fizesse algumas coisas antes não feitas, como a utilização do reverb natural das salas, a possibilidade de se gravar ao vivo (com muitos takes finais de Thom sendo os primeiros, garantindo espontaneidade), e não havendo aquela pressão de ser vigiados a cada dia, abrindo caminho para por exemplo a gravação de “Let Down” ocorrer no salão de baile da casa durante a madrugada! Mas, como diz o ditado: o diabo mora nos detalhes. Por trás dessa espontaneidade, morava uma banda preocupada em não soar como eles em um momento anterior, que vinha abandonando as guitarras e as abordagens sonoras convencionais em seu som, incorporando mais teclados (como o Mellotron), samplers e elementos de diferentes estilos. “Airbag”, por exemplo, foi a primeira tentativa da banda de usar o computador para editar a bateria, e usando pausas no baixo, para soar como algo próximo do dub. A voz eletrônica em “Fitter Happier” é oriunda do programa de leitura da Macintosh, ela reproduz um texto de Thom escrito espontaneamente para refletir sua angústia no momento. Tamanha era ela que ele não conseguiu proferir, e deixou isto por conta da máquina.

                Essa abordagem mostrou claramente do que se tratava o OK Computer: um protesto da banda. Contra eles mesmos, contra o capitalismo, contra o tratamento da indústria musical aos artistas e nosso modo de viver no século XXI. A capa é uma sobreposição de diversas fotos Polaroids de um único enquadramento de uma cena urbana, e todo o movimento dela está em uma única camada. Isso retratava perfeitamente a sensação de impotência que a banda sentia, ao ter que seguir sua agenda de promoções e assistir toda a vida por janelas de aeroportos, ônibus e hotéis. Toda essa impotência foi atribuída por Yorke, de uma abordagem mais pós-moderna, ao capitalismo. Suas leituras na época, como Noam Chomsky e Eric Hobsbawm, contribuíram para essa crítica. Um dos grandes símbolos desta é o desenho do encarte de dois homens apertando a mão, um deles com uma maleta na mão, que representava a exploração do sistema capitalista. Ele foi incorporado na capa de sua coletânea e viria a se tornar o símbolo que melhor representaria esse álbum e o Radiohead.

               
           Nós poderíamos aqui escrever um texto inteiro falando sobre a complexidade musical de “OK Computer” e seu conteúdo lírico. O importante aqui é levantar dois pontos: o primeiro deles é que seus membros estavam incorporando influências que saíam do rock e suas guitarras, como Miles Davis, Can, Marvin Gaye, Krzysztof Pedererick, Johnny Cash e etc., o que iniciaria uma quebra total com seus álbuns anteriores e com a visão de que a mídia e o público haviam desenvolvido sobre eles. O segundo ponto é que toda a temática do álbum iria se corroborar com os próximos acontecimentos na vida da banda. “OK Computer” foi um sucesso absoluto de vendas e de crítica. As campanhas inovadoras pela internet e pelos lugares públicos (como a letra de “Filter Happier” espalhada em forma de instrução nas estações de metrô de Londres), assim como a simbologia por trás dela (a subsidiária americana mandou 1000 fitas do álbum para a imprensa, todas coladas permanentemente em suas caixas) contribui para ser o álbum número um dos charts do Reino Unido e eventualmente posições altas posições nos charts  do mundo inteiro. Ele foi aclamado como um clássico logo em seu primeiro ano de existência e foi certificado com inúmeros discos de platina e ouro em um curto período de tempo, algo como havia acontecido com “The Dark Side of the Moon” e, mesmo não sendo pensado como um álbum conceitual, a banda levou duas semanas só para decidir a ordem da tracklist. . Todos os holofotes, então, voltaram-se a eles, a banda do momento.

                A melhor forma para retratar o que aconteceu nesse período é pelo documentário lançado em 1998 chamado “Meeting People is Easy”. Uma extensa turnê de mais de 104 shows, que passou pela Europa, América do Norte e Japão, o documentário retrata os bastidores desse período pela mesma ótica que “OK Computer” utiliza. Inúmeras sessões de fotos, entrevistas, compromissos com imprensa, todos os fatores que já perturbavam a banda nos anos anteriores ganharam proporções míticas e, ao longo da turnê, foram criando angústia e frustrações intra e interpessoal dentro dela. Podemos ver o cansaço de seus integrantes transbordarem em algumas sessões e o modo como Thom Yorke foi se tornando agressivo com as pessoas a sua volta (tanto com a banda quanto com a imprensa). Michael Stipe, para ajudar nesse colapso emocional de Thom, ensinou-o o mantra “I’m not here, this isn’t happening/ eu não estou aqui, isso não está acontecendo”, que viria a se tornar um dos embriões de “Kid A”, “How to Disappear Completely”, que inclusive pode ser vista sendo executada por Yorke em uma das passagens de som retratadas no documentário. É com esse senso de alienação que iniciamos nossa análise, de fato, de “Kid A”.

O passo sem volta

                “Eu sempre usei a música como uma maneira de seguir em frente e lidar com as coisas, e eu senti que a coisa que me ajudava a lidar com as coisas de minha vida foi vendida para o mais alto lance e eu estava aceitando este. Eu não poderia lidar com isso”. Essa é a frase que Thom descreve o sentimento dele em relação ao “OK Computer”. Ele estava extremamente incomodado com o fato de que bandas estavam procurando seguir a sonoridade de Radiohead, e chamava a música da época de “buzz fridge/ barulho de geladeira”, uma analogia para descrever músicas que soavam tão iguais que eram igualmente ignoradas como o barulho da geladeira é. Disse ele também que não queria mais ser rockstar (lembram de "Anyone Can Play Guitar"?), totalmente desiludido com seus sonhos primários de se tornar uma estrela. Nesse sentido, mais uma vez, não só ele como o Radiohead inteiro, queria seguir em frente sonoramente. Yorke havia comprado um laptop anteriormente, e agora havia comprado um piano, que instalara em sua nova casa em Cornwall, onde passou um tempo isolado, desenhando e caminhando muito (a repetição da palavra walking em “Morning Bell” faz justamente referência a isso). Ele se voltou mais ao piano, abandonando quase que completamente a guitarra, e nessa época compôs em seu piano “Everything’s in its Right Place” e “Pyramid Song”. Aqui, podemos começar a contar sobre os insights de seu álbum através de sua própria tracklist.

                A sua primeira faixa, “Everything’s in its Right Place”, é um grande reflexo do que havia acontecido com a banda naquele momento: mais ritmo do que harmonia. O Radiohead havia se inspirado no álbum “Remain in Light” do Talking Heads para compor este álbum. Nas palavras de Yorke, ele disse que quando compunham no modo tradicional, ele tinha que se ater ao que estava fazendo, e não tinha essa visão externa da própria música. Utilizando seu laptop, Yorke pode perceber que criando um ritmo e deixando ele repetir em looping, aquilo permitia uma contemplação externa na música e fazia a composição fluir. Além disso, a questão lírica havia mudado de abordagem também: Yorke tinha desenvolvido um certo bloqueio para escrever, e estava jogando fora continuamente o que escrevia e não gostava. No entanto, sua postura mudou junto ao álbum, onde ele começou a guardar tudo que escrevia e tentar criar letras e ideias com as frases soltas que compunha. A letra e composição dessa faixa reflete exatamente isso: ela possui cerca de dois riffs, um ritmo contínuo, três frases e a repetição constante desses atributos. A voz de Yorke se transforma em um instrumento, e aparece em estéreo, com pequenos trechos editados, em diferentes pitches e velocidades e em reverso, que dão um tom mais neurótico ainda. A música não possui guitarra. Na verdade, ela é basicamente uma composição de estúdio, com samplers, piano, baixo e bateria eletrônica. Definitivamente, o Radiohead havia mudado de direção.

                A segunda faixa, ahomônima ao álbum, é uma canção de ninar com intenções não muito acalentadoras, totalmente eletrônica, com mais samplers e a voz de Yorke praticamente inteligível de tão processada que está. Esse processamento foi através de um instrumento chamado ondes Martenot, uma espécie de “theremin deitado”, que se tem mais controle de sua escala. Esse instrumento viria a ser uma marca do álbum e acompanharia o Radiohead em suas turnês. Com uma certa influência da glitch music, a faixa mais uma vez não apresenta guitarras e apenas uma série de camadas de sintetizadores, vozes e bateria processada.

                A terceira faixa, “The National Anthem”, é uma das mais marcantes do álbum, e com certeza dá o seu tom caótico mais explicitamente possível. Oriunda de um riff antigo de baixo, que é então distorcido e percorre a música inteira. A bateria então rompe, pausa, cresce, diminui, causando a sensação de inconstância. Podemos ouvir o ondes Martenot claramente nessa música, um som fantasmagórico que realça o clima apocalíptico da faixa. Há um som de rádio também, processado, que viria a ser outra marca do Radiohead ao vivo, onde Jonny toma em sua mão um pequeno rádio com delays e processadores embutidos para criar um clima de confusão moderna, algo como “são tantas notícias e fatos que nem consigo processar”. A guitarra então aparece pela primeira vez, mas totalmente processada e irreconhecível, girando em delay no meio do clima caótico da música. A influência do jazz novamente marca presença no som da banda, com uma sessão de sopros inspiradas no “caos organizado” de Charles Mingus em seu álbum ao vivo “Town Hall Concert”. A intenção era soar como o som do trânsito nas grandes cidades, e a empolgação de Yorke foi tanta durante a condução da sessão que ele quebrou seu pé de tanto pular! Essa música capta todo o sentimento que o álbum queria passar: a nova geração, de mesma idade da banda, encontrava-se sufocada e perdida em tanta informação, barulho e caos que o capitalismo tinha gerado nos grandes centros urbanos. “Everyone is so near, What’s going on?/ Todo mundo está tão perto, o que está acontecendo?” ilustra esse pavor que havia trespassado a banda em sua exaustiva turnê anterior e conecta com o sentimento de todos aqueles que se sentiam invadidos pelo caos urbano em seus corações.

                A quarta faixa, “How to Disappear Completely”, cai como uma luva no contexto do álbum. Essa é a faixa que mencionei anteriormente e que se conecta com os sentimentos de Yorke de estar à beira de um colapso quando estava em turnê e confrontado por todas as exigências que a agenda de um álbum bem sucedido como “OK Computer” demandava. O mantra ensinado por Michael Stirpe evoluiu para essa linda canção, com arranjos orquestrais de Jonny Greenwood, que contou com a Orchestra of St. John's (uma orquestra com as mesmas influências de Jonny), um baixo caminhando junto com sua percussão e bateria. Strobe lights and blow speakers, [...] I’m not here/ Luzes piscantes e falantes estourando, [...] eu não estou aqui” refere-se claramente a sensação que Yorke estava sentindo nos palcos. Esta música então vem com a mesma função teve para ele: acalmar o ouvinte após todo o caos imposto por “The National Anthem”. Pela primeira vez, as cordas metálicas aparecem em forma de violão e um belo slide na guitarra elétrica, que cria um riff acalentador junto com os belos falsetes de Thom. A quinta faixa, “Treefingers”, vem de Yorke sampleando a guitarra de O’Brien e criando uma peça ambiental maravilhosa, e também dá esse tom de calma que “How to...” passa. Ela denunciava também mais uma influência também de Thom, a música ambiental de, por exemplo, Aphex Twin.

                Na sexta faixa, “Optimistic”, é a primeira vez que ouvimos guitarras de fato. Quando ela estava em fase de composição, a banda temia que eles iriam cair no mesmo campo de seus álbuns anteriores, justamente pela presença exacerbada das guitarras e sua estrutura linear. Seu refrão, “you can try the best you can, and the best you can is good enough/ você pode tentar o seu melhor, e o melhor que você pode é bom o suficiente” elucida o sentimento que ele teve e o que ele ouvia ao achar que, naquele momento, tudo o que eles possuíam não era digno de lançamento. Thom constata em uma de suas entrevistas que, ao finalizar aquela faixa, ele sentia que “OK Computer” e toda a dor envolvida em sua promoção e turnê fora deixada para trás definitivamente. A letra ainda traz uma sensação de “darwinismo social” causada pelo capitalismo selvagem que Thom denunciara mais claramente em “OK Computer”. Este é o momento que o Radiohead se aproxima mais, sonoramente falando, de seu passado. Na sétima faixa, “In Limbo”, a banda trás uma intrincada música, com frases sincopadas na guitarra, uma grande quantidade de reverbs nos instrumentos, que traz a sensação de realmente seu eu-lírico estar perdido em um grande limbo. Em um intricado compasso, a banda cria um clima etéreo que é totalmente quebrado no final, por uma distorção e sobreposição de camadas do convite “Come In, Come In/ Entre, entre”, denunciando o caos que estava por vir mais uma vez.

                A oitava faixa, “Idioteque”, é oriunda de instrumentos com samplers e sintetizadores feito por Jonny Greenwood, em mais de 50 minutos de fita, entregues na mão de Yorke, que usou apenas um segmento de cerca de oito segundos. Coincidentemente, esse trecho continha frases de músicas já existentes, que eram “Mild und Leise” de Paul Lansky e “Short Piece”, de Arthur Kreiger, ambos artistas quais Jonny possuía muita influência e que autorizaram o uso dos trechos. A música foi feita para se soar como uma música de discoteca caótica e muito alta, aquela que “está saindo tão alta das caixas que você sabe que está causando dano”, nas palavras de Thom. A letra refere-se a uma temática intrínseca do álbum, que estava assombrando Yorke e Stanley Donwood, responsável pela arte de “Pablo Honey” e desse álbum: a possível nova era glacial e as mudanças climáticas, e um mundo pós-cataclismo. Imagens do Worldwatch Institute, que vinham acompanhadas de estatísticas sobre o derretimento das calotas polares, deu o tom apocalíptico necessário para o álbum. Sua capa traz montanhas de gelo que, nas palavras de Donwood, traziam a ideia de “uma paisagem de poder...um tipo de poder cataclísmico existente em paisagens como essa”. Ela também é presente no encarte (como na imagem abaixo), que carrega também uma espécie de piscina de sangue. Essa ideia é oriunda da novela “Brought to Light”, de Alan Moore e Bill Sienkiewicz, sobre uma distopia com terrorismo de estado onde pessoas foram assassinadas e essa contagem foi feita através de piscinas de 50 galões cheias de sangue. Essa imagem o assombrou e fez usar desse artifício como o “símbolo de perigo iminente e expectativas despedaçadas” que o álbum trazia.

               
     “Morning Bell”, a penúltima faixa do álbum, traz uma letra completamente paranoica, acompanhada de uma balada em cinco por quatro. Sua letra circula pela casa do eu-lírico e por frases aleatórias como “where’d you park your car/ onde você estacionou seu carro?”, juntamente a uma repetição harmônica e guitarras processadas em barulhos que aumentam ainda mais a paranoia em cima da música. Ela é uma faixa soturna que dá o tom final de caos do álbum, e talvez denuncia como Thom Yorke escapou de seus próprios fantasmas, com o final da letra sendo “walking/ andando” incessantemente, até chegar em sua última faixa, “Motion PictureSoundtrack”, que Thom compôs em um órgão de pedal, influenciado por Tom Waits, e foi complementada por samplers de harpas por Jonny Greenwood para dar um clima de trilha sonora de “filmes da Disney nos anos 50”. A letra traz o eu-lírico perdido em uma meia-vida com alguém que ele acha que está ficando louco, e parece estar se matando, em uma frase final “I will see you in the next life/ eu vou te ver na próxima vida”, dando um tom realmente ambíguo de esperança/desesperança por parte do ouvinte.


                Este álbum retratou como nunca os sentimentos que envolveram o Radiohead e seus membros durante esses anos. Foram necessárias diversas sessões em diversos lugares (inclusive em países diferentes), horas de fita e muitas quebras de paradigmas para que esse álbum fosse concebido. A banda, quando percebera o rumo que havia tomado, causou tanto pânico entre eles quanto o álbum causa em nós: será que abandonamos nossos instrumentos? Damos um passo sem volta? O álbum não teve singles  para promove-lo, não dando assim ideias para banda de uma expectativa de recepção do público de suas novas músicas. Eles usaram da internet para promover o álbum e, pela primeira vez na história (que se há notícia), o streaming foi utilizado para promover um novo álbum. Assim, o álbum foi pirateado em sites como o Napster, inicialmente visto como uma consequência negativa. Mas a banda percebeu que na verdade isso fez com que as pessoas se engajassem mais com as músicas novas, causando o efeito de que muitos já cantavam a letra deles em shows onde o álbum não havia sido lançado ainda. A verdade é que os números não mentem: mais uma vez, o Radiohead foi número um no chart do Reino Unido e, pela primeira vez, também nos Estados Unidos, ficando também entre as cinco primeiras posições em vários outros países. 

                  “Kid A” fecha um ciclo e inicia outro na vida da banda, mas, mais do que isso, ele antecipa o século XXI em alguns meses: todas as novas formas de consumir música acontecem com ele e todo o seu conteúdo reflete uma geração qual faço parte e, mesmo 16 anos depois de seu lançamento, sente-se contemplado. Ele permitiu que houvesse inovação no mainstream, que foi sempre complicada, e denunciou que talvez o mundo artístico estava preparado para voltar a abrir sua cabeça como outrora. Um som mais "head" do que "Radio". Quase que instantaneamente compreendido pelo público e pela crítica, este álbum nunca envelhecerá, liricamente e sonoramente, e sempre será digno de revisitação, mesmo que traga alguns fantasmas à tona, que na verdade, são sentimentos compartilhados por milhões de pessoas que o têm. Ele só corrobora o que Steven Wilson diz em seu documentário “Insurgentes”: a música melancólica, apesar de triste, mostrando que não estamos sozinhos em nossas angústias, confortando-nos e trazendo-nos, de certa maneira, felicidade.

Thursday 17 October 2013

Elemental - A elementar volta do ícone pop

               

   O Tears for Fears foi outra das bandas que marcaram minha vida, principalmente porque essa ouvi de todos os lados: meus tios gostam, meu pai gosta, minha mãe gosta. Eu demorei para aprender a apreciar de fato o conjunto musical deles porque só depois de ouvir a discografia e digeri-la é que entendi a dimensão da musicalidade que abrange. Não é à toa que eles venderam 25 milhões de cópias, ao todo, dos pouquíssimos seis álbuns e uma coletânea que eles possuem. Tive a oportunidade de desfrutar de um show deles em São Paulo, em 2011, no Credicard Hall, e o que eu vi é uma banda totalmente em forma, com uma performance perfeita e emocionante, e o que eu espero sinceramente é que haja um novo disco de presente para nós, em breve.
                Mas eu vou falar hoje de um disco não muito famoso da carreira deles, o “Elemental”. Eu poderia falar do “Raoul and the Kingsof Spain” que é menos famoso ainda (e tão bom quanto, na minha opinião), mas o fato é que “Elemental” é o marco para a volta da banda. Em 1991, Curt Smith e Roland Orzabal, que praticamente são o Tears for Fears, pois escreviam e compunham mais de 90% do material da banda, romperam a parceria por vários motivos: Smith queria reduzir a carga de trabalho (havia rompido o casamento durante a turnê do The Seeds of Love), Orzabal insistia em produzir, mesmo tendo sido criticado e falhado em tentativas anteriores (e ele estava, de certa forma, impondo essa produção) e o empresário Paul King havia falido a sua empresa que administrava a banda desde 1982, a King’s Outlaw Management Agency, que ao longo dos anos 80 havia gerado dívidas em cima de dívidas devido a fraudulências cometidas por King, que inclusive foram descobertas por Orzabal. Após esse rompimento, o Tears for Fears continua com Roland Orzabal, gravando o single Laid So Low (Tears Roll Down), que alcançou uma boa posição nas paradas e foi incluso na coletâneaTears Roll Down (Greatest Hist 1982-1992), que também teve um tremendo sucesso comercial, sendo condecorado com disco duplo de platina no Reino Unido. Mas é em 1993 que um álbum de inéditas é lançado novamente sob o nome Tears for Fears.
                Mas se a banda é apenas Roland Orzabal e Curt Smith, “Elemental” não seria apenas um álbum solo de Orzabal? Não. Mesmo sem Smith, esse álbum carrega a essência do Tears for Fears, a riqueza musical, a abundancia de timbres, de ritmos, letras que questionam e aconselham o ser humano moderno, enfim: o máximo da qualidade pop que a banda sempre teve. Além disso, podemos ouvir em “Tomcats Screaming Outside”, álbum solo de Orzabal, uma proposta bem diferente, em todos os quesitos, do Tears for Fears. O que não se pode negar é que esse álbum carrega toda a emoção e estrutura de Roland. “Elemental” foi gravado em um estúdio construído na casa dele, o “Neptune’s Kitchen”, na intenção de Roland ficar mais perto de sua esposa, que na ocasião estava gravida, e de gastar menos, é claro. Esse foi o trabalho, de fato, que ele se consolidou como produtor, e que envolveu basicamente o trabalho de quatro pessoas: ele, Allan Griffiths (guitarrista e colaborador de longa data do Tears for Fears, um dos poucos também em que colaboravam para escrever material), Tim Palmer (produtos que havia trabalhado com Roland no último single e futuramente com outros artistas, como o Pearl Jam em seu álbum TEN) e Bob Ludwig, que fez a masterização. Com exceção de alguns músicos, como Guy Pratt (baixista em algumas faixas, que viria a gravar o último álbum do PinkFloyd, The Division Bell), o álbum inteiro foi feito por esse pequeno grupo. Orzabal disse em algumas entrevistas que ele tinha uma obsessão muito grande em cada música que gravava, não descansando até que alcançasse a sonoridade desejada. Ele também relata que estava mais maduro e, de uma certa forma, diferente daquele Roland que havia acabado de sair da escola do primeiro álbum da banda.
                Na primeira música, “Elemental” já sentimos a riqueza da produção e dos timbres, com uma atmosfera de diversas camadas, que incluem além de guitarra, baixo e bateria, teclados e sintetizadores, inclusive com efeitos sonoros (o som de um elefante pode ser ouvido). Isso reflete também a experiência que Roland estava tendo podendo trabalhar em casa, explorando melhor o equipamento que possuía. A letra, mesmo com a mesma alma das antigas músicas, reflete um pensamento mais maduro, mais navalha, como na frase do refrão “Don’t say you’re up when you’re down/ It’s elemental”, que mostra mais dessa ideia que Roland queria trazer de que o mundo não é só maravilhas e feito apenas de conquistas e sucesso. Esse conceito é melhor ilustrado no grande hit do álbum, “Break it Down Again”, onde Orzabal descreve a beleza de cair e se levantar de novo e o quão isso é natural na vida. Outra coisa que é notada é a forte presença de guitarras, uma diferença considerável se analisarmos a quantidade de camadas que existe em relação aos álbuns anteriores, o que trouxe uma roupagem nova nesta música, coisa que o Tears for Fears sempre fez de álbum para álbum. O disco segue com “Cold”, com mais uma letra de desilusão, falando da dureza do eu-lírico em relação a corresponder ao amor, com belas camadas de vocais, um riff de baixo marcando o tempo, unindo-se a percussiva bateria e formando um interessante groove que mescla o comum ao exótico e mais sintetizadores e efeitos. “Break it Down Again”, como dito anteriormente, foi o hit do álbum, sendo lançado antes como single e atingindo um certo sucesso comercial, parte pela letra, parte pelo ritmo dançante, e aqui percebemos o gosto de Roland por usar timbres de corda, muitos dos quais ele mesmo tocou nos seus teclados.
                “Mr. Pessimist” traz quase que uma atmosfera eletrônica, carregada de teclados, com uma guitarra desfilando em frases cheia de efeitos, abrindo parte da música para um instrumental belo, destacando o solo de piano que encerra a faixa. “Dog’s a Best Friend’s Dog” traz uma pegada mais rock, com um riff de guitarra marcante, um órgão Hammond rasgando e um refrão fácil. Mais uma vez, a letra carrega a mensagem de “pé no chão”, em partes que em coro repetem “Some dreams you dream alone”, por exemplo. A mesma sentença serve para “Fish Out of Water” (quase que a mesma ideia em “You’re dreaming your life away”), que traz uma belíssima balada com uma bela cozinha de violão, bateria e baixo em um refrão marcante, assim como mais sintetizadores e pianos que criam o embalo da música. “Gas Giants” é um interlúdio eletrônico quase que instrumental para as três faixas finais do discos, que quase são uma sequência. “Power” é uma linda canção, com a letra falando alegoricamente sobre nossa sede de poder para garantir um futuro que está acontecendo no presente. Uma outra balada com refrão marcante, quase no mesmo estilo de “Fish Out of the Water”. Então vem “Brian Wilson Said”, uma homenagem que Roland fez para a grande mente por trás do Beach Boys, Brian Wilson, já que Orzabal diz que admira muito aqueles que inovam a música, principalmente se falando da música pop. Esta faixa lembra em alguns momentos Beatles (outra grande influência de Orzabal) e Beach Boys, e também tem seus momentos de jazz, como o belo solo de guitarra, acompanhada pelo piano. O disco então fecha com “Good Night Song”, uma linda balada coberta de guitarras e com uma bela cozinha “orquestral” do teclado, com uma letra que traz o incentivo de libertação, presente em tantas outras canções da banda, como a famosa Shout.
                Assim se encerra “Elemental”. Não foi um disco de grande sucesso como os anteriores, vendendo um pouco mais de meio milhão de copias e alcançando um bom lugar nas paradas dos países europeus, mas sem sombra de dúvidas ainda demonstra o poder do Tears for Fears de criar a boa música pop. Cada música parece ser um mundo diferente, devido a grande diversidade sonora, que inclui diferentes arranjos, ritmos e timbres e, ao mesmo tempo, seguindo uma linha, a linha dessa grande mente criativa que é Roland Orzabal. Mesmo sem seu grande parceiro, ele se mostrou capaz de lançar um disco a altura dos anteriores, superando-se ainda na questão da produção, que é realmente impressionante, ao pensar que esse disco foi gravado de forma independente.
                Se você está afim de ouvir algo de fácil audição e que faça você dançar, relaxar e ao mesmo tempo pensar, esse é um excelente disco. Recomendo todos os discos, e acredito que você já deve ter ouvido alguma música deles mas, tratando-se de Tears for Fears, cada disco é uma nova experiência. Segue a tracklist e o link para ouvir o álbum no YouTube:

7 – Gas Giants



Um grande abraço a todos e prometo que não demoro mais tanto para outra postagem! Boa audição!

Wednesday 25 September 2013

Nursery Cryme - O início do teatro-música do Genesis


Eu sou suspeito para falar sobre o Genesis. Na minha adolescência eu tinha uma certa compulsão pela banda, principalmente pela fase do Peter Gabriel. Minha família sempre ouviu Genesis, influência da popularidade da banda nos anos 80, mas meu pai e meu tio também gostavam muito da fase Peter Gabriel.  Eu só fui descobrir algo dessa época um belo dia em que abri o porta-luvas do carro do meu tio e me deparei com o “Genesis: Live” com aquela bela capa do momento ao vivo que eles tocam “Watcher of the Skies”, com Peter Gabriel em sua fantasia Batwings” e o belo azul de luzes no palco. A partir daquele momento, eu entrei de cabeça no mundo do Genesis, e o próximo álbum que eu encontrei foi justamente o “Nursery Cryme”.

O Genesis, um pouco antes da gravação deste álbum, passou por um sério período de transição. Anthony Phillips, que estava por trás de grande parte da sonoridade da banda no álbum anterior, “Trespass”, havia se retirado, pois ele tinha um grande “medo de palco” e seu médico recomendou que ele parasse com as apresentações e, após três bateristas diferentes, a banda também estava desfalcada nas baquetas. Peter Gabriel então insere um anuncio nos jornais a respeito do recrutamento de novos membros e neste momento entra Phil Collins na história do Genesis. Em contato com a bateria desde pequeno, Collins desenvolveu na adolescência mais seu lado ator, só em 1969 iniciando de fato sua carreira de músico, com o álbum “Ark 2” com a banda Flaming Youth, um álbum conceitual que pode ter um trecho seu ouvido aqui. A banda acaba depois de algumas tensões e pela falta de sucesso comercial. Collins consegue realizar um bom trabalho, gravando a percussão na faixa “The Art of Dying” de George Harrison, e é isso que também chama a atenção de seus futuros companheiros de banda. Realizada na casa dos pais de Gabriel, Collins nadava na piscina enquanto os demais candidatos faziam suas audições, decorando as partes das músicas. Na sua vez, ele realmente se mostra versátil e, nas palavras de Gabriel “Seu corpo e o kit da bateria possuíam uma relação incrível”. A banda também angariou o guitarrista Mick Barnard, com quem realizaram cerca de 30 shows entre o final de 70 e início de 71. Insatisfeitos com a performance de Barnard (principalmente Tony Banks, que era extremamente preocupado com a sonoridade da banda), eles voltam a procurar guitarrista e assim encontram o sr. Steve Hackett, que estava no Quiet World, que havia lançado apenas o álbum “The Road” (uma faixa do álbum pode ser ouvida clicando aqui).

Assim, estava feita a formação que atuaria nos próximos três discos: Peter Gabriel nos vocais, flautas e bumbo, Tony Banks no teclado e eventualmente no violão, Mike Rutherford no baixo e guitarra, Steve Hackett na guitarra solo e Phil Collins como segunda voz e bateria. Uma grande parte das músicas já estavam prontas em partes (“Musical Box” e “Fountain of Salmacis” possuíam partes já escritas anteriormente por Anthony Phillips). O Genesis encontra uma outra sonoridade, dando um passo para a escuridão de seu som, abandonando o que havia sido visto em “Trespass”, que possuía mais melodia alegres e uma temática menos densa. Vou expor aqui inicialmente o seguinte fato: “Nursery Cryme” não foi o álbum que levou o Genesis à explosão comercial, mas foi aquele que consolidou com certeza sua grande personalidade. O final dos anos 60 e o começo dos 70 foi uma época que fomentou muitas bandas do rock progressivo, muitas delas infelizmente parando em seu primeiro ou segundo álbum por não terem atingido sucesso comercial, pelos mais diversos motivos: falta de um bom empresário, tensões internas mas, muitas vezes, por falta de originalidade. E o Genesis com certeza tinha esse potencial para ser uma banda de personalidade.

Por que? Bem, comecemos pelo encarte deste álbum:


Nessa parte do encarte, observa-se a letra de “The Musical Box”, uma pequena história referente a ela e “Harold the Barrel”, que é escrita em forma de teatro. Esta é uma das belezas do Genesis. Começando por “The Musical Box”, você jamais conseguira entender o contexto da letra se você não ler a história no encarte (e no caso dela, não entenderá o conceito da capa também). A história da música é a respeito da irmã que, jogando críquete com seu irmão, mata ele removendo sua cabeça utilizando o bastão. Em um belo dia, ela encontra a caixa de música do irmão e abre, e assim começa a tocar “Old King Cole” juntamente com o surgimento do espirito dele, que aparece envelhecendo rapidamente. Assim, ele começa a ter desejo sexuais pela irmã e tenta a persuadir, mas então chega a enfermeira da família e arremessa longe a caixa musical, destruindo esta e o irmão. A história é refletida diretamente na letra e estrutura da música, que é dividida em atos explicitamente. A harmonia bonita e triste do começo carrega partes pesadas da letra, como “And the nurse will tell your lies/of a kingdom beyond the skyes/but I’m lost within this half-world/It hardly seems to matter now”, mostrando o confinamento do garoto em um mundo desconhecido. O final, por exemplo, é o irmão já velho, implorando por sexo: “Why don’t you touch me? Touch me now!”. Essa letra é inspirada na casa vitoriana que Gabriel viveu na infância e fala um pouco sobre a d
eturpação da magia da vida que a idade adulta nos trás. Na performance ao vivo, podemos observar a relação que a música de Genesis tinha com o teatro e como ela era interpretada por Gabriel da forma que trouxesse mais vida a letra possível, que pode ser observada no vídeo a seguir:

Outra ponto importante nesta primeira música é a mudança de sonoridade da banda. Steve Hackett trouxe guitarras mais densas e solos mais complexos, utilizando até mesmo a técnica de tapping, que não era nem um pouco comum na época. Phil Collins trouxe uma atmosfera percussiva para a bateria: observa-se linhas de chimbal nas partes mais baixas da música que criam um clima não existente nas músicas anteriores do Genesis. Além disso, há uma certa violência nas viradas que auxiliam a música a crescer nos devido momentos, como no momento antes de seu groove cavalgada, levando a música ao seu ápice e, é claro, seus bem encaixados backin’ vocals. Tony Banks traz um piano elétrico envenenado com um efeito overdrive, que cria uma segunda guitarra solo em alguns momentos, e órgãos que realizam um clima majestoso e emocionante ao final da música. Mike Rutherford introduz os pedais de baixo, tocando guitarra base nessa música, tanto no estúdio quanto ao vivo, e Peter Gabriel, mesmo confessando não gostar de tocar, usa a flauta em momentos que criam uma camada essencial à melodia. “The Musical Box” definitivamente é o cartão de visitas para um Genesis diferente, mais maduro e agressivo, conciso e poético.

For Absent Friends” é a primeira música que Phill Collins faz a voz principal, e que Steve Hackett desfila com suas habilidades em composições ao estilo violão clássico. Junto com “Harlequin”, são peças pequenas e bonitas, que formam importantes interlúdios no álbum. “The Return of the Giant Hogweed” começa com uma introdução em que Banks utiliza seu piano elétrico distorcido e Hackett um belo riff utilizando tapping. A letra é baseada em uma praga de plantas que aconteceu na Inglaterra, e Peter Gabriel transforma-as em monstros invadindo o país. A música é pesada (mais pesada ao vivo, particularmente), com um show de grooves e viradas de Phill Collins e uma linha incrível de baixo de Rutherford. Aliás, ele é perito nisso, na minha opinião: todas as músicas do Genesis possuem  linhas de baixo complexa e que falam por si só, e é estranho ver como Rutherford não é citado como referência de baixistas de rock...

Seven Stones” é uma excelente composição, onde a banda retoma um pouco daquelas harmonias iluminadas de “Trespass”, com destaques para os vocais harmonizados, hora Gabriel e Collins, hora corais, assim como o Mellotron, teclado que simula as cordas de uma orquestra, recém aquisição de Banks (comprado do King Crimson!). A letra carrega um conteúdo folclórico, contando a lenda de um velho marinheiro sobre sorte. A guitarra de Hackett aparece pesada, mas sob medida, criando um clima tenso nas horas certas. “Harold the Barrel”, traz a história de Harold, um homem que quer se suicidar. Nessa pequena peça, Peter Gabriel desfila com uma letra criticando a sociedade de forma trágica e cômica, mostrando as mesquinharias e os julgamentos feitos sobre um homem que só queria estar vivendo longe daquele lugar. Isso fica evidente no final da música: a sociedade grita “Nós podemos te ajudar! Somos todos seus amigos, se você descer e vier conversar conosco!” e Henry, no seu último momento de desilusão diz “Vocês devem estar brincando...” e pula, final trágico entoado pelos acordes tristes do piano. Essa é uma crítica que Gabriel vai repetir muito nos próximos álbuns: críticas à sociedade britânica antiga, mas querendo atingir a contemporânea, através de alegorias criadas num cenário inusitado.

O álbum se encerra com “The Fountain of Salmacis” que conta de Hermaphroditus (personagem de ambos os sexos da mitologia grega que gerou o termo “hermafrodita”) e a ninfa Salmacis, que se une forçadamente à Hermaphroditus, insinuando um estupro, fazendo assim os dois se tornarem um só.  Uma referência à mitologia grega, essa música é mais no tom de poesia, sem nenhuma analogia evidente (apesar de que, se tratando de Gabriel, sempre existe alguma coisa por trás). Com um instrumental complexo, cheio de difíceis passagens e dinâmicas, a banda mostra todo seu entrosamento que viria a resultar na química para os próximos álbuns: linhas de vocais indispensáveis, grooves e viradas swingadas, o Mellotron e o órgão com camadas engrandecedoras, a guitarra falando baixo quando preciso, gritando em solos tocantes, principalmente ao final da música e o baixo, como eu já disse, um show à parte.

Nursery Cryme” não teve a melhor das recepções na época. A Rolling Stones disse que o problema era na produção, e eu concordo em partes: existiam músicas que ficavam muito mais poderosas ao vivo. Mas isso também pesava pelas performances teatrais que o Genesis realizava, o que com certeza dava mais vida pra música. Independente disso, esse álbum era o primeiro passo da história dessa grande banda para uma nova fase musical, que marcou uma era da música mundial e uma geração toda, e continua marcando até hoje. A audição desse álbum é rápida: se você já conhece o conceito de rock progressivo, será mais rápida ainda. Aconselho que as letras sejam acompanhadas em uma segunda audição e, por favor: assistam performances ao vivo dessa época, e assim dá pra se entender a grande essência da música do Genesis!

Segue o tracklist e o link para ouvir no YouTube:

1 – The Musical Box
2 – For Absent Friends



Um abraço e até a próxima, tenham uma boa experiência! 

Tuesday 24 September 2013

Hallo, amigos!

Hoje, realizei algumas mudanças nas postagens anteriores que serão padronizadas para as próximas: todos os nomes referentes a um artista, álbum ou nome técnico (técnica musical) terá um hiperlink que abrira sua respectiva referência. Eu inseri a referência do Wikipedia em inglês, pois acho as mais completas e mais simples de se ler, caso prefiram em português, por favor avisem!

Também há links nas músicas que correspondem as suas traduções. Algumas delas não são boas traduções, mas dá para se ter uma noção se você domina um pouco de inglês, pois a original estará do lado.
Esperem que gostem dessa novidade! Agradeço meu amigo Tixa pela construção dela

Obrigado e tenham uma boa noite, amanhã tem postagem nova!


Monday 23 September 2013

Discipline - Um novo conceito de música


Falar de King Crimson é complicado, por ser uma banda que tem diversas fases em sua discografia. Pretendo ainda postar outras resenhas de seus discos, então não vou me ater muito ao histórico de cada integrante de formações anteriores. Resolvi começar pelo “Discipline” por ele ser o começo de uma nova era do KC após um longo hiato, onde cada um de seus integrantes da última formação (que registrou “Red”) estava em um projeto completamente diferente, e é isso que faz com que o King Crimson seja tão rico musicalmente: a vasta bagagem musical de seus integrantes, combinadas da forma mais original possível.

Em 1981, Robert Fripp, guitarrista e fundador do KC, tinha a ideia de montar um grupo que fosse mais ambicioso musicalmente e comercialmente falando, pois ele estava no The League of the Gentlemen, que é uma excelente banda, porem de difícil audição, considerando a cultura pop da época, que estava entrando na era do New Wave. Ele havia tido experiências musicais no pop com grandes nomes, como David Bowie e Peter Gabriel. Após entrar em contato com Bruford (baterista dos últimos três álbuns do KC antes do hiato) a respeito de um novo projeto, ele vai atrás de Adrian Belew, que Fripp havia conhecido quando ele fez as aberturas do The League of the Gentlemen com sua banda GaGa. Adrian Belew foi descoberto por nada menos que Frank Zappa, que havia achado curioso como ele conseguia realizar os mais diversos sons em sua guitarra (mosquito, elefante, ambulância e por aí vai) e esse então excursionou com ele, onde atuava mais como guitarra base e cantor de poucas músicas, além de ter gravado o magnífico “Sheik Yerbouti”. É dada a hora de escolher um baixista. Após uma curta audição, com três baixistas, eis que Fripp aparece com Tony Levin, em que ele havia tido contato nas gravações de Peter Gabriel. Esse dispensa comentários: o que falar do cara que colaborou em mais de 500 álbuns, dentre estes artistas como Pink Floyd, John Lennon, Dire Straits, Buddy Rich, dentre outros grandes nomes?

Feito a formação, a banda voa para a Inglaterra e começa a escrever as músicas e a ensaiar. O que temos nesse momento é o seguinte: Fripp com seus sintetizadores e seu Frippertronics, que era a técnica de looping (repetição) onde uma faixa era gravada na fita e se repetia, enquanto outras faixas eram gravadas e assim reproduzidas simultaneamente que, unidas ao sintetizador, criavam uma ambiência fantástica. Fripp já vinha usando essas novas técnicas com quem ele trabalhou nesta época, mas principalmente com Brian Eno. Bill Bruford estava com novas ideias de experimentação, que incluíam o uso da bateria eletrônica e o não uso direto do chimbal como forma de condução, usando os tons e o prato de condução. Além disso, ele ainda incorporou elementos de percussão, ideia que vinha desde a gravação de “Lark’s Tongue in Aspic” com o percussionista Jamie Muir. Adrian Belew estava trabalhando e excursionando com o Talking Heads, e talvez foi o que mais teve inspiração e contato direto com o New Wave/World Music, principalmente tratando-se de David Byrne, líder do Talking Heads. Tony Levin também havia trabalhado com Peter Gabriel e estava repleto de influência da World Music. Mas ele talvez foi o que trouxe a contribuição mais excêntrica para a sonoridade desse álbum, o chamado Chapman Stick:


O Chapman Stick combina guitarra com baixo, e geralmente é tocado com a técnica de tapping, ou seja, pressionar as cordas com os dedos, e no caso do Levin utilizando as duas mãos, uma para a parte do baixo e outra para a parte da guitarra. Isso abre um caminho diferente de harmonização, em que os quatro souberam explorar muito bem.

Logo já se vê na primeira música “Elephant Talk”: o inicio dela é justamente um riff de Levin no chapstick. E nesta faixa, já somos introduzidos ao que viria a ser o novo som do King Crimson pelos próximos dois álbuns, e que podemos chamar de um novo conceito de música: Bruford inicia uma condução que lembra alguma coisa dos paradiddles do funk, a guitarra de Belew com acordes alavancados, imitando o som de um elefante em alguns momentos, Fripp em arpeggios repetitivos e hipnotizantes, usando de seu sintetizador em um solo que poderia ser definido como “a voz de um mosquito” e Levin completando a cozinha complexa da música, e quando digo complexa não me refiro ao número de notas, mas sim a contrapontos e notas que criam uma harmonia percussiva na música. A letra cantada por Belew não é nada parecida com as anteriores do KC: é uma letra mais simples, mais descarada, mais moderna.
Talk/ it’s only talk/ Arguments/ Agreements/ Advice/ Answers” e assim continua Belew nas estrofes subsequentes, utilizando as próximas três letras do alfabeto para iniciar todas as palavras relacionadas a comunicação. Isso acontece com todas as letras deste álbum: são espécie de poesias modernas, com temas mais urbanos, sem muito nexo. A questão fica mais evidente em “Thela Hun Ginjeet” que é um anagrama para “heat in the jungle”, onde boa parte da letra consiste na gravação de um relato de Belew a respeito de uma gangue e um policial que o abordaram e em “Indiscipline” que é baseada numa carta que Belew enviou para a esposa a respeito de uma escultura que ela havia feito. Isso mostra uma total quebra com o passado, onde a preocupação com letra foi tão grande que já chegou a haver um membro só para escreve-las.

Seguindo com as músicas, ouvimos a bela “Frame By Frame”. Frenética, tem uma levada violenta nos tons, acompanhado por impactos graves no Chapman stick, mais arpeggios de Fripp e uma guitarra carregada de efeitos e trejeitos de Belew. Um ponto interessante que deve ser observado nessa música é quando Belew e Fripp estão tocando em alguns momentos juntos, praticamente a mesma frase mas em tempos distintos (um no contratempo do outro). Isso cria um efeito hipnótico e uma linha rítmica muito interessante que vai permanecer no King Crimson até o seu último álbum lançado, “A Power to Believe”. No final dela, essa característica fica bem nítida, e quando há a dobra de tempo de uma das guitarras, você percebe o quão esse efeito é fantástico. Em “Thela Hun Ginjeet”, Fripp executa um riff em 7/8, enquanto a banda inteira toca em 4/4, criando um efeito rítmico único. Nessa música, percebemos o quão pode-se ir longe ao criar ambiências com as guitarras, em momentos em que Belew realiza uma espécie de percussão com harmônicos abafados e delays, assim como quando extravasa o uso da alavanca, e Fripp usando e abusando de seus efeitos, seja nos solos ou nas bases. Na bela “Matte Kudasai”, Belew usa a guitarra em slides, unidos ao delay e ao uso do botão de volume, criando em certas horas uma atmosfera que nos dá a sensação de flutuar no ar e em outras o barulho de gaivotas! A linda melodia de vocal de Belew completam o clima tranquilo da música. Em “Indiscipline”, é o momento de Bill Bruford se libertar de ritmos únicos e realizar uma espécie de improviso, com diversas hemiolas, principalmente quando executa ao vivo.

As instrumentais fecham o disco com maestria. “The Sheltering Sky” é registrada com Belew fazendo a base e Fripp passeando com o Frippertronics e sintetizadores. Vale destacar o uso da Slit Drum por Bill Bruford, uma espécie de caixa percussiva que é utilizada mais na percussão africana, incorporação que caracteriza a World Music. Este é um elemento essencial na música, criando cozinha ideal para que houvesse o realce das belas guitarras de Fripp. “Discipline” é uma faixa que poderia ser definida como “hipnose musical”. Com o excesso de repetição de riffs, as guitarras tocando arpeggios diferentes em tempos diferentes com o mesmo timbre, a bateria percussiva e o chapman stick em frases complexas, que enganam os ouvidos por vezes se estão usando ou não a sua parte guitarra, temos uma música que cria um estado de ritmo arrítmico, de conforto que incomoda, uma hipnose consciente regada a curiosidade de imaginar como esta música está sendo executada.

Este álbum pode ser definido com o estranho rotulo de New World Wave Music complexa. Não é música para dançar, mas também não é música para relaxar. O título,” Discipline” exprime a técnica e concentração dos músicos do KC ao executarem composições tão complexas, e ao mesmo tempo vai de desencontro com o que o álbum reproduz: desconstrução, rompimento com o som tradicional da banda, inconstância. A primeira audição de “Discipline” será confusa: você pode não conseguir ouvir a obra como um conjunto, prendendo-se a guitarra histérica de Belew, perdendo-se no ritmo hipnótico de Bruford. Mas tenho quase certeza que a vontade que você vai ter ao acabar a audição é querer ouvir de novo, e de novo, afinal: “I repeat myself when I’m under stress”! Quando finalmente você se acostumar e conseguir enxergar o conjunto da obra, tenho certeza que “Discipline” será um álbum para toda a vida. E é por isso que tentei em meu texto explicar ao máximo os detalhes técnicos de cada música: deixe que flua na primeira vez, e então volte a lê-los (principalmente se você é musico e se interessa por novos conceitos).

Espero não ter prolongado demais o texto. É extremamente difícil escrever a respeito de um dos álbuns mais fascinantes da carreira do King Crimson e com certeza um importante marco na música mundial. Segue agora a tracklist e o link para audição do álbum:




Abraços e tenham uma boa experiência!

The Inner Mounting Flame - O filho ácido de Miles Davis



Para falar de Mahavishnu Orchestra, temos que falar de Miles Davis. O grande gênio do jazz estava em mais uma fase de se reinventar. Após o polêmico “In a Silent Way”, onde Davis havia começado com sua experimentação que daria origem ao jazz-fusion e onde havia conhecido o jovem John McLaughlin, ele resolve fazer “uma puta banda de rock and roll” para o seu próximo álbum, que é nada mais nada menos que “Bitchies Brew”. Para isso, ele convoca novamente um time de peso, que inclui Wayne Shorter e Joe Zawinul (que viriam a formar o Weather Report, um dos maiores expoentes do jazz-fusion), Chick Corea (que viria a fundar o Return to Forever, outro grande expoente do jazz-fusion) e finalmente John MacLaughlin e Billy Cobham, que a partir dessa encontro se uniriam para fundar o Mahavishnu Orchestra.

(Curiosidade: um dos músicos também é o Sr. Airto Moreira, do Brasil! Ele participaria também futuramente no Return To Forever)

Mas o que é mais importante no “Bitchies Brew” além do encontro dos músicos fundadores? Tudo. Esse álbum foi a extravagancia máxima de Miles Davis, foi uma quebra total de tradição no jazz. Algumas músicas deste álbum simplesmente não foram ensaiadas, só havia algum tom, e podia-se ouvir algumas vezes estalos de dedos guiando o tempo, assim como comandos de voz de Davis para indicar quem ia solar em determinado momento. A guitarra elétrica, os pianos elétricos, as inconstâncias do trompete de Miles Davis, tudo em uma conjuntura de experimentalismo nunca até então registrada desta maneira. Isso vinha em conjuntura com o desejo dele de se atualizar com os outros movimentos, como podemos ver na cena da Inglaterra, onde o Pink Floyd e o jovem King Crimson usavam do experimentalismo dentro do rock, criando o que viria a ser o rock progressivo. Deste álbum surgiu o jazz-fusion, alguma semente do funk e com certeza muitas outras coisas muito além do seu tempo, como por exemplo “OK Computer”, do Radiohead, em que ThomYorke disse ter ouvido bastante “Bitchies Brew” antes de compô-lo.

Dessa maneira, John MacLaughlin e Billy Cobham haviam experimentado essa ruptura com as barreiras tradicionais do jazz na forma mais crua possível. John MacLaughlin fomentou então uma banda que contivesse instrumentistas de diversas partes do mundo, para assim mesclar os mais diversos ritmos possíveis. Essa ideia sua já era algo pré-concebido por sua influência da música indiana, através de seu estudos com o guru Sri Chinmoy, que inclusive encorajou o nome da banda (“Mahavishnu” significa “Compaixão divina, poder e justiça”). Assim, a banda contava com McLaughlin que era inglês, Billy Cobham que era do Panama, o tecladista Jan Hammer da República Tcheca, o violinista Jerry Goodman de Chicago e o baixista Rick Laird da Irlanda.

A primeira audição de “The Inner Mounting Flame” quase certamente não será agradável. A primeira faixa “Meeting of the Spirits” já é uma violência extrema. A harmonia agride, a velocidade das notas de Billy Cobham agride, a guitarra e o violino frenéticos em solos conjuntos agride, tudo isso leva a pensar em um encontro de espíritos que beira uma disputa pela saída do Purgatório. Os momentos e volumes se alternam, mas a tensão é constante. O que levaria, então, ao renomado guitarrista Steve Vai a dizer sobre essa música “Cada músico é fenomenal e esta peça tem fluxos e refluxos, levanta-se e explode com ameaçador aura metafísica? Então você vai para a segunda faixa, “Dawn” e aqui encontramos uma leve batida 7/4, e assim os instrumentos vão entrando novamente, o violino e a guitarra vão se tornando frenéticos e mais uma vez a música explode. Você passa para a faixa três, e logo é recebido por um groove funk frenético e...a ficha cai. Sim, o som do Mahavishnu Orchestra é agressivo, é o chamado de acid jazz, e quando se diz acid, não se está referindo ao ácido lisérgico, mas sim ao sentido de efervescência, de corrosão, de amargo na garganta. Os únicos momentos que são mais calmos são os das faixas “A Lotus On Irish Stream” e “You Know You Know”, mas quando digo mais calmos, se refere a ausência de rápidos andamentos, de um beat agressivo, mas ainda sim ouvimos a fúria, como um vento trespassando os campos e quase arrancando a lótus do solo em alguns momentos de “A Lotus On Irish Stream”. A mescla de dissonância e blues clássico em “The Dance of Maya”, com a retomada inesperada de seu tema inicial quando ainda o blues prevalece mostra a capacidade que esses músicos tinham de ter domínio sobre os diversos ritmos, e assim utilizar isto nestas geniais composições.

The Inner Mounting of Flame” exprime toda a técnica e transcendência que esses espetaculares músicos tinham naquele momento. Podemos ainda observar que certas músicas lembram mantras, mas mantras explosivos, que não remetem a meditação, e sim a libertação violenta de uma alma frustrada pelo mundo moderno. A primeira audição desses disco, assim como seus sucessores, assusta, incomoda. Mahavishnu Orchestra não é uma banda para se ouvir todos dias, mas ela cai como uma luva nos dias em que precisamos extravasar todos os sentimentos confinados pela rotina. Abra sua mente, prepare os ouvidos, ponha pra tocar em um bom som e sinta a vontade de aumentar o volume a cada música. Se você estiver no dia certo, terá uma ótima experiência!

Segue a tracklist e o link para acessar o álbum no Youtube (infelizmente, não se encontra todas as músicas do álbum neste link):

1- Meeting of the Spirits
2- Dawn
3- The Noonward Race
4- A Lotus on Irish Streams
5- Vital Transformation
6- The Dance of Maya
7- You Know You Know
8- Awakening


Um grande abraço e até a próxima!